O fracasso da Rodada de Doha, que discutiu os rumos do comércio mundial e os impasses sobre a redução de subsídios agrícolas, contribui para agravar a situação de miséria dos hatianos. Contra a fome, lama virou comida no país, conforme o jornal britânico The Guardian em reportagem sobre tortas e biscoitos feitos de barro. O fato é confirmado pelo doutor em Relações Internacionais e diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma), Ricardo Seitenfus.
Em entrevista ao Terra, Seitenfus afirmou que o insucesso na OMC pode agravar ainda mais a situação do país mais pobre da América Latina. Afundado na miséria e sem primeiro-ministro desde abril, quando Edouard Alexis foi afastado do cargo em meio a protestos contra a alta nos preços dos alimentos, o Haiti conta com a ajuda internacional para atender às necessidades mais básicas da população.
Quadro que deve perdurar indefinidamente após o fracasso da Rodada de Doha. “O Haiti deverá permanecer nessa situação de grave penúria alimentar e necessitando continuar recebendo a ajuda pontual de outros países e de órgãos como o Banco Mundial, o que é absolutamente ineficiente, pois o que o país necessita é de uma agricultura de subsistência desenvolvida a partir de sua própria economia”, disse Stenfuns.
Nos anos 1980, o Haiti, assim como outros países que tinham uma agricultura de subsistência, optou pela importação de alimentos em função dos preços baixos no mercado internacional.
Foi lá onde a elevação nos preços dos alimentos teve maior impacto, já que 80% da população vive com menos de US$ 2 por dia. Sem dinheiro para comprar comida, uma das soluções encontradas pelos haitianos foi comer tortas e biscoitos feitos a partir de lama.
Esses alimentos, apesar de não terem valor nutricional, enchem o estômago e “acalmam a fome”. A venda dessas tortas acabou criando condições para o desenvolvimento de uma indústria lucrativa ainda que rudimentar.
Para Stenfuns, essa prática, antes eventual, se agravou muito nos últimos meses. “Nunca os haitianos tiveram excedentes de alimentos, mas a situação está mais grave hoje porque as pessoas simplesmente não têm dinheiro para comprar alimentos”.
“Há uma coisa que eu considero ouro no Haiti: o povo. Eles vivem de maneira digna e são extremamente nacionalistas, orgulhosos do seu passado”. Sem eletricidade, a vida no país é diurna, com milhares de pessoas circulando pelas ruas vendendo carvão, laranjas e cabras, entre outras coisas, segundo ele.
“É uma luta constante pela sobrevivência que convive com uma ausência de violência. Há um contraste extraordinário de uma massa de pessoas que lutam para sobreviver e que ao mesmo tempo não se sentem ameaçadas por roubo”, contou.
“Quando o dia amanhece, eles enfrentam mais um desafio para permanecer vivos. E às 21h já não há mais ninguém nas ruas. Mas quando não conseguem vender tudo o que tinham para vender, permanecem nas ruas com uma vela acesa, principalmente as mulheres”.
Seitenfus também chamou a atenção para a escravidão infantil, assunto muitos vezes tratado como uma questão cultural. “Há mais de 250 mil menores trabalhando como escravos no Haiti. São geralmente filhos de mães sem condições que são doados a outras famílias. Essas pessoas transformam as crianças em escravas dos seus próprios filhos, muitas vezes escravas sexuais”.
Moreno Osório/Terra