Na onda dos novos documentários que fazem a arqueologia dos primórdios da cultura pop nacional, Raul – O Início, o Fim e o Meio, de Walter Carvalho, é o filme que vem para reaproximar a lenda histórica da emoção que um dia ela causou. Raul Seixas (1945- 1989), o mito fundador do rock nacional, ressurge inteiro em sua capacidade de mobilizar, causar ternura, rebelião, beleza, atração, repulsa, orgulho, piedade, espanto.
Para reproduzir uma definição do próprio artista, é um filme que deve catapultar uma nova onda de “raulseixismo”. Segundo dados da produção, mesmo 20 anos após sua morte, Raul Seixas é um dos artistas que mais vendem discos no País, cerca de 300 mil cópias ao ano. Seus álbuns podem ser encontrados na loja Amoeba de Los Angeles ou num shopping center de Gifu, no Japão.
Quando o cineasta Walter Carvalho pensou em um título para seu documentário sobre Raul Seixas, que estreia amanhã em todo País, imaginou apenas estampar o primeiro nome do roqueiro. Seria simples e quase autoexplicativo. Depois, achou melhor o nome todo.
O subtítulo não veio para explicar muito, talvez, mais para confundir: Raul Seixas: O Início, o Fim e o Meio. Com Raulzito, como ele era conhecido desde os tempos de moleque arteiro nas ruas de Salvador, na Bahia, até seu primeiro grupo de rock (Raulzito e os Panteras), nada seguia uma lógica.
O documentário se propõe a narrar os dias de Raulzito, do garoto fã de Elvis a artista já corroído pelos vícios. Walter Carvalho não se furta de assuntos polêmicos, como casos extraconjugais, excessos de drogas (maconha, cocaína, ácido) e os tempos em que participava de rituais satânicos. Trata-se de um retrato humano do mito Raul Seixas – com uma trilha sonora que vale o ingresso por si.
“Ao começar, minha única intenção era conhecer Raul Seixas. Eu não faço filme para provar nada”, diz o diretor Walter Carvalho. “Achava e continuo achando que um mito como Raul não tem explicação e nem deve ter. Ele está no inconsciente das pessoas.”
O esforço biográfico desencavou imagens inéditas de diversos arquivos e cerca de 94 (50 estão no filme) entrevistas em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro e no exterior (Suíça e Estados Unidos), reunindo ex-mulheres, filhos, amigos de infância, músicos, profissionais da área musical e parceiros, como Paulo Coelho. O desfile de familiares e amigos é vertiginoso – quando Dakota, o neto de Raulzito, surge em cena, exibindo a mesma cara desafiadora e alegre do avô, um colar de couro neo-hippie no pescoço, a disposição de ouvir os discos do velho no quarto, é como uma redenção para o espectador.
Raul não nutria grande simpatia por Caetano Veloso, um dos depoimentos mais marcantes do filme, e a MPB dita “universitária” sempre teve preconceito em relação à obra dele – considerada por intelectuais da música como simplista, “tresacordista” demais, escorada muitas vezes numa sonoridade típica do brega nacional. Ainda assim, é tocante a sinceridade de Caetano ao admitir a genialidade da canção Ouro de Tolo e do seu verso preferido (“Ah! Mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado: macaco, praia, carro, jornal, tobogã; eu acho tudo isso um saco”).
O documentário provoca grandes cenas de humor involuntário, como quando confronta Paulo Coelho, escritor e ex-parceiro de Raul Seixas, com seu contrato com uma seita satanista. Paulo Coelho não voltou para rescindir o contrato, diz seu ex-mestre, o que deixa o autor (que ficou muito rico) apreensivo.
A habilidade de colocar o dedo nas feridas traz rancores adormecidos à tona: traições conjugais, brigas, esquecimentos. A equipe do filme deixa sem graça o irmão vivo de Raul Seixas, Plínio, com a lembrança de que a canção Meu Amigo Pedro foi feita em sua “homenagem”. Diz assim: “Hoje eu te chamo de careta, Pedro/E você me chama vagabundo”.
As cenas que mostram os últimos shows de Raulzito, já decadente, são dolorosas. Mas sempre muito reveladoras. O encontro no palco com o antigo partner, Paulo Coelho, o surpreende e maravilha. Mas, no camarim, Paulo Coelho não consegue ser senão protocolar com Raulzito, que quer abraçá-lo, conversar com ele. Raulzito tinha se tornado um fardo, um constrangimento para os amigos.
Não é um documentário definitivo, haverá sempre uma parte inédita de Raul a ser revelada. Baiano alegre que, aos 9 anos, imitava Elvis Presley, e, aos 20, já tinha mudado a face da música brasileira, Raul contaminou gerações com seu toque libertário.
Preste atenção
1. Raul e Paulo Coelho, em turnê, brincando de dançar sapateado e fazendo micagens lembram os Beatles (Os Reis do Iê Iê Iê)
2. Foi o irmão de Raul, Plínio, quem forneceu cenas de Super-8 inéditas e gravações em fita (Raulzito mandando recados)
3. Atores são distribuídos pelo filme. No ritual de sacrifício de animais da seita satânica, quem atua é um sósia, e não Raulzito
4. No último show de Raulzito, em Brasília, o cantor vira o microfone para o público e capta áudio da multidão gritando “Raul”
5. A última mulher de Raulzito, Helena Coutinho, foi namorada de adolescência do diretor Walter Carvalho durante dois anos
RAUL – O INÍCIO, O FIM E O MEIO
Direção: Walter Carvalho.
Gênero: Documentário (Brasil/2011, 120 min.).
Classificação: 12 anos.
Estreia dia 23