Nunca tido ouvido falar em Elisa Alicia Lynch, até o dia em que, cascavilhando no estande da Biblioteca do Exército, na última Bienal do Livro de Pernambuco, deparo-me com um volume que me chamou a atenção. Era uma edição de capa tosca de “Elisa Lynch, mulher do mundo e da guerra”, de Fernando Baptista, de 2007, da própria Biblioteca do Exército Editora. Dei uma folheada e fui fisgado pela extraordinária personalidade ali retratada.
O livro do gaúcho Fernando Baptista, jornalista e economista já falecido, foi lançado em 1985 pela lendária Editora Civilização Brasileira, do não menos lendário Ênio Silveira, que assinou o texto da contra-capa, assinalando que, na obra, o autor “se livrará dos estritos e precisos limites da biografia de personagem histórica para inflamar nossa imaginação com a crônica apaixonante e apaixonada de uma belíssima mulher que não mediu esforços par alcançar os mais elevados patamares de sua aventurosa carreira de cidadã do mundo”.
A biografia romanceada ganhou naquele ano o Prêmio Literário Nacional do Instituto Nacional do Livro e dois anos depois já tinha traduções para o espanhol circulando na Argentina..
Inicialmente, o que me fez comprar o catatau de 550 páginas foi a extraordinária figura da protagonista, personagem marcante da história do Paraguai à época da guerra com a Tríplice Aliança (Argentina-Brasil-Uruguai), que culminou com a devastação do país guarani. Elisa, do ponto de vista da dimensão histórica, poderia ombrear com Evita Perón, mas talvez por ser mais ambígua e polêmica e ter sido heroína dos derrotados, tenha sido um pouco ofuscada pela portenha.
Ela nasceu em 1835, em Cork, Irlanda, e morreu em Paris, em 1886, aos 51 anos, depois de ter sido uma das mais ricas e poderosas mulheres da América Latina em sua época. Sua família era “de classe média com raízes nobiliárquicas”. Ela foi aluna do requintado Trinity College e casou, aos 15 anos de idade, com o médico e capitão do Exército francês, Xavier de Quatrefages, indo morar de imediato na Argélia, onde servia o marido. Lá, tornou-se exímia amazonas e arrasou corações, protagonizando um escândalo que culminou em tragédia: por seu amor, bateram-se em duelo um conde russo aventureiro e o comandante militar francês em Argel, que levou a pior, falecendo em consequência de ferimento a bala. O episódio é tratado com extrema discrição por Fernando Baptista, que é categórico ao afirmar que a jovem irlandesa não traíra o esposo, opinião, entretanto, não compartilhada pelo próprio, que a mandou embora.
Elisa, então, foi viver em Paris, onde começou a frequentar o “rendez-vous” de madame Dumont, que tinha entre seus clientes um jovem general sul-americano, Francisco Solano López, filho do presidente paraguaio Carlos Antônio López e embaixador plenipotenciário do seu país junto à corte de Napoleão III.
Todos as descrevem como belíssima, embora as poucas fotos disponíveis – de má qualidade, é verdade – não parecem ratificar o superlativo. Mas o fato é que Solano López se apaixonou pela ruiva irlandesa. A partir daí, a vida de Elisa Lynch assume contornos de epopéia moderna.
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Retrato de Francisco Solano López |
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Solano a levou para Assunção, onde ela chegou grávida do primogênito Panchito. Mas como era casada com o oficial francês, passaram a viver uma relação de concubinato que escandalizou a sociedade local, sobretudo as senhoras burguesas. Enquanto as mulheres “direitas” lhe torciam os narizes, o patronato paraguaio logo formava fila para visitá-la na mansão equipada com requintes europeus pelo amante, em busca de favoritismo com o poder, principalmente a partir do momento em que Solano, com a morte do pai, assumiu a presidềncia da república guarani, em pleito indireto. Rapidamente Elisa se tornou uma espécie de eminência parda, influindo nos mais diversos aspectos da vida nacional. Teve oito filhos com o “mariscal” e o incentivou nos planos de tornar o Paraguai uma potência econômica e militar. Com efeito, o Paraguai vivia uma época de prosperidade, sendo um dos poucos países latino-americanos, em meados do século 19, a não ter dívida externa, e conseguiu montar um exército aguerrido e disciplinado. Do ponto de vista estratégico, faltava-lhe uma saída para o mar, o que produzia a dependência da navegação na bacia do Prata, controlada por argentinos, brasileiros e uruguaios.
Fernando Baptista traça um amplo painel geopolítico, econômico, militar, diplomático e histórico da guerra que eclodiu em 1865, com a intervenção brasileira no Uruguai e a invasão do Mato Grosso pelas tropas de Solano López, e somente se encerrou cinco anos depois, à custa de enorme mortandade, sobretudo do lado paraguaio.
A guerra em si é objeto de grandes embates ideológicos na historiografia dos países envolvidos, como sabemos. Mas parece que a narrativa de Baptista consegue o prodígio de se equilibrar entre essas correntes divergentes, pois o homem chegou a ser condecorado pelo governo brasileiro, bem como pelo Ministério da Defesa do Paraguai, país onde foi membro honorário do Instituto de História e do Museu Militar.
Sua narrativa é bastante empática para com os paraguaios, embora retrate com realismo a mecânica da ditadura de Solano López, que, no auge do delírio autoritário, em 1868, mandou fuzilar seus dois irmãos, Benigno e Venâncio, tendo as próprias irmãs, Inocência e Raphaela, e até a mãe, dona Juana Paula, sido levadas às barras dos tribunais de exceção.
Durante o conflito, enquanto enriquecia com aquisições favorecidas de enormes latifúndios no Paraguai, na Argentina e no Brasil, Elisa percorria a cavalo os campos de batalha, servia de enfermeira, dava ordens, recebia informações, participava de intrigas e alianças de bastidores, apoiava o seu homem em todos os momentos.
Foi uma das mulheres mais poderosas, polêmicas e magnéticas de sua época e, como sói acontecer nesses casos, mesmo após sua morte continuou gerando discussões e paixões, com parte de biógrafos, historiadores e palpiteiros pintando-a como demônio e parte como heroína.
Na batalha final de Cerro Corá, estava ao lado do ditador e do filho Panchito, que tombaram em confronto com as tropas brasileiros, sendo enterrados pela mulher, com suas próprias mãos.
Bem, aí está um resumo da portentosa narrativa do escritor gaúcho, cuja leitura é daquelas que seguram o leitor pela gola de tal modo que, esteja ele fazendo o que estiver, seu desejo é largar tudo e voltar para o livro – em suma, o tipo de narrativa que vale a pena.
Em muitos momentos, a narrativa épica parece emular Euclides da Cunha, sobretudo em passagens antológicas, como vocês podem conferir no trecho a seguir:
“Esta noite passou sem ninguém dormir em Passo Pocu. As mulheres que acompanhavam soldados, que somavam quase um outro exército, vindas de Assunção e dos departamentos do interior, prestaram, nessa dolorosa vigília, colaborações valiosíssimas. Iam, elas mesmas, pelas picadas e banhados, no meio dos juncos, onde viviam jacarés, decididas a encontrar seus maridos, filhos e companheiros, ou aproximavam-se, a tiro de revólver das trincheiras aliadas, cujos comandantes, percebendo, através da noite iluminada por milhões de estrelas e pela metade de uma generosa Lua, de quem se tratava, advertiram seus soldados para não atirarem. Às vezes, se misturavam paraguaias e argentinas, assuncenas e baianas, mesmo grávidas, auxiliando os padioleiros. Já alta madrugada e de manhã cedo aquela confraternização humanitária havia-se generalizado. Aconteceu um verdadeiro armistício. Atestando a bravura característica dos paraguaios, foram encontrados cadáveres e soldados feridos até no centro do gigantesco acampamento aliado, de contornos entrincheirados. Dessa forma samaritana, de tão nobre conteúdo humano, alguns milhares de paraguaios, argentinos, brasileiros e orientais foram reconduzidos à vida, tratados e devolvidos às suas famílias, ainda que sem membros ou cegos pelos estilhaços da tempestade de tiros e granadas.”